quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Educação do Trabalho de Célestin Freinet





Alberto Tornaghi


Introdução:
Célestin Freinet se diferencia da maioria dos outros importantes pensadores e teóricos da educação por ter sido ele mesmo um professor primário que atuou em sala de aula por quase toda a sua vida (Freinet 1975:17). Toda a sua proposta pedagógica deriva diretamente do trabalho desenvolvido com os alunos na busca de um processo que os levasse a gostar da escola e do trabalho, que os levasse a ser cidadãos conscientes e participantes críticos do meio social. Esta proposta que criou com seus pares é conhecida por muitos e significativos nomes ("Pedagogia Freinet", "Pedagogia do Trabalho", "Pedagogia do Bom Senso", "Método Natural" e "Pedagogia do Sucesso") e propõe uma prática pedagógica centrada na produção do estudante e na cooperação entre pares. Sampaio (1989) diz que "a Pedagogia Freinet surgiu para atender à necessidade vital da criança: chegar ao seu pleno desabrochar como um indivíduo autônomo, um ser social responsável, co-detentor e co-edificador de uma cultura.".

Em Célestin Freinet buscamos a ideia de que o aprendizado deve se dar a partir de ações que sejam necessárias, pela produção de bens que sejam úteis aos aprendizes. Estes tanto podem ser bens materiais - geradores elétricos para iluminar uma escola carente do interior - como bens culturais - poesias, desenhos, jornais e livros escritos e impressos pelos próprios alunos e que eram enviados às escolas das comunidades vizinhas1.

Freinet é um pioneiro na proposição de uma prática pedagógica centrada na cooperação. Seu trabalho pressupõe a colaboração não só entre os estudantes como entre os educadores. Deriva de suas ações, ainda na década de 20, a primeira cooperativa de educadores de que se tem notícia que produzia um boletim, circulares, revista de textos infantis (La Gerbe - O Ramalhete), troca de documentos, organização de correspondências interescolares e encontros para intercâmbio entre educadores. Lançou assim o que chamou de movimento pedagógico cooperativo. Dizia que, desta forma, ele e seus companheiros tinham "rompido o círculo do individualismo estéril" (Freinet, 1975:21).

Esta proposta pedagógica se funda na junção da cooperação no trabalho coletivo com a valorização da produção individual. Assim, ao mesmo tempo em que permite que cada estudante produza no seu próprio ritmo, faz com que perceba que pertence a um conjunto maior e que sua produção tem valor para todo o grupo podendo ser melhorada e ampliada pela interferência dos colegas. Eis porque fomos buscar em Freinet as bases para a construção do MULEC*.

E como a pedagogia Freinet consegue que, a um só tempo, as crianças tenham uma produção individual significativa, respeitando o ritmo de trabalho de cada uma delas e cooperem com os colegas na produção destes? Segundo Rosa Sampaio ela o faz desenvolvendo (Sampaio, 1989):
o senso de responsabilidade
o senso cooperativo
a sociabilidade
o julgamento pessoal
a reflexão individual e coletiva
a criatividade
a expressão
a comunicação
o saber fazer (know how)
os conhecimentos úteis
a capacidade de reduzir os pontos de desigualdades sócio-culturais
Para garantir o desenvolvimento das capacidades acima foram propostas as "Técnicas Freinet" e enunciada uma série de princípios, as "Invariantes Pedagógicas", que dão suporte para o professor utilizar as técnicas.

1. As invariantes pedagógicas
Com o intuito de garantir que os professores interessados na Pedagogia Freinet conseguissem utilizar as técnicas de maneira eficiente, Célestin organizou esta coleção de princípios que guiam o professor em sua utilização. A cada uma das invariantes Freinet associou um teste que permite ao professor avaliar sua prática pedagógica. Ele as chamou de invariantes porque se aplicam identicamente a indivíduos de qualquer procedência cultural, qualquer povo.(Sampaio, 1989)
São 32 invariantes organizadas em três grupos:
A natureza da criança - 3 invariantes
As reações da criança - 9 invariantes
As técnicas educativas - 20 invariantes
Não cabe aqui enunciar cada um destes princípios mas vamos destacar os que de forma mais direta dizem respeito ao trabalho cooperativo e os que sugerem alguma forma de exploração das atividades do MULEC.
As invariantes que tratam da natureza da criança lembram que crianças e adultos têm a mesma natureza e portanto os mesmos direitos e necessidades básicas e que seus comportamentos têm determinantes da mesma ordem, isto é, dependem de seu estado fisiológico, orgânico e emocional.

No segundo grupo, estão invariantes que tratam do papel contraproducente do autoritarismo, das normas de disciplina pré-impostas e sem razão evidente e da coerção. Também neste grupo se explicita o papel positivo que têm a escolha do próprio trabalho pelo aluno e da motivação para o trabalho. Uma invariante ressalta que o trabalho tem que ter um objetivo claro - "ninguém gosta de atuar sem objetivo, como máquina" - e que o dever escolar pelo dever escolar tem que ser abolido enquanto com outra declara que as crianças devem sempre ter êxito pois o fracasso inibe, destrói o ânimo e o entusiasmo. A derradeira invariante deste grupo afirma que o trabalho tem primazia sobre o jogo, que o trabalho é que é natural na criança.

Este grupo de invariantes demonstra o acerto da concepção geral do MULEC como um ambiente onde os estudantes criam obras cujo tema é escolhido por eles, ao mesmo tempo que sustenta a importância de levar os alunos a criarem suas próprias regras de convivência (regras sociais) para a organização dos grupos produtivos.

O terceiro grupo de invariantes trata diretamente das técnicas e práticas de trabalho em sala de aula. Dentre estas destacamos as seguintes, mais pertinentes aos aspectos do uso do MULEC :

Invariante No 13 - As aquisições não são obtidas pelo estudo de regras e leis mas pela experiência.
O MULEC se apresenta como um instrumento para registrar as observações feitas nas experiências permitindo que os alunos cheguem à necessidade das leis e as reconstruam como consequência do registro de suas observações.

Invariante No 16 - A criança não gosta de receber lições ex-cátedra.
Usando o MULEC a criança aprende porque produz e enquanto produz. Esta produção pode incluir pesquisa, experiências e debates, mas tudo se dá a partir da atuação da criança. Uma aula que parta do interesse do estudante que pesquisou, escreveu sobre um assunto e trouxe dúvidas, o interessa e o envolve.

Invariante No 17 - A criança não se cansa de um trabalho funcional.
O MULEC deve ser usado para que os estudantes gerem produtos de sua escolha e portanto participem de atividades que os envolvam e os solicitem. Cada atividade ou jogo proposto aos estudantes deve fazer sentido para eles e se inserir num conjunto mais amplo de atividades que levem explícita e evidentemente a um fim.

Invariante No 18 - A criança e o adulto não gostam de ser controlados e receber sanções. Isso caracteriza uma ofensa à dignidade, sobretudo se exercida publicamente.
O papel reservado ao professor que usa o MULEC é o de companheiro de trabalho, elemento que facilita a produção e colabora no enfrentamento das dificuldades surgidas no processo produtivo. O trabalho de correção dos textos produzidos cabe em parte ao próprio aluno (correção ortográfica) com os instrumentos que o sistema fornece. Quando exigir a participação do professor deve-se ter claro que o que necessita de correção é o trabalho e não o aluno.

Invariante No 19 - Notas e classificações constituem sempre um erro.
A nota é eminentemente inibidora. Não será possível ter participação livre numa produção artística, de invenção ou qualquer outro tipo de criação se a ela será dada uma nota. Os instrumentos de avaliação que incluímos no MULEC servem para que o grupo envolvido com a produção verifique se está conseguindo atingir os objetivos planejados e se o produto tem a qualidade desejada. Desta forma, a avaliação é um instrumento para correção de rumos que deve ser usado pelo próprio grupo de alunos.

Invariante No 21 - A criança não gosta de sujeitar-se a um trabalho em rebanho. Ela prefere o trabalho individual ou em equipe numa comunidade cooperativa.
Isto indica que as atividades propostas no MULEC devem preferencialmente ser dirigidas a pequenos grupos que consigam desta forma manter viva a identidade de cada elemento do grupo.

Invariante No 22 - Ordem e disciplina são necessárias na aula.
É absolutamente fundamental que se tenha clareza da necessidade imperiosa deste princípio quando se pretende desenvolver um trabalho cooperativo. Por isso mesmo as regras de convívio devem ser produto da decisão do grupo que, desta forma, construirão as regras que acreditam necessárias para o funcionamento satisfatório do coletivo. Desta forma, o uso do MULEC contribui explicitamente para a reflexão sobre as regras de convívio e o desenvolvimento de habilidades sociais.

Invariante No 27 - A democracia de amanhã prepara-se pela democracia na escola. Um regime autoritário na escola não seria capaz de formar cidadãos democratas.
Usar o MULEC supõe estabelecimento de relações entre os alunos de respeito ao trabalho e às decisões alheias. Implica em respeitar direitos de minorias e acatar decisões da maioria, em participar de uma produção com muitas facetas onde as diversas contribuições são igualmente necessárias e diferentes na sua criação e função. A diversidade contribui para a criação de obras melhores e mais amplas do que seria a reunião simples dos trabalhos dos vários alunos. Ao perceber isso os alunos estarão descobrindo o valor e o poder que advém de se organizar democraticamente.

Invariante No 30 - É preciso ter esperança otimista na vida.
Sem comentários.

3. Finalmente
A pedagogia Freinet não deve ser entendida como uma camisa-de-força que nos amarra e impede modificações. Ao contrário, ela se preocupa permanentemente com a atualidade, em estar a serviço da compreensão e da preparação do estudante para o mundo real. Para tal ele sugere que se use todos os recursos que a sociedade fornece a cada momento. Em suas palavras, diz que podemos
"tentar modernizar os utensílios da escola, melhorar suas técnicas, para modificar progressivamente as relações entre a Escola e a Vida, entre as crianças e os professores, de maneira a adaptar ou a readaptar a escola ao meio, para obter um melhor rendimento de nossos esforços comuns" (Freinet, 1974:12),
e mais adiante:
"A escola Moderna não é nem uma capela nem um clube mais ou menos restrito, mas, na realidade, uma via que nos conduzirá àquilo que, todos juntos, construirmos."(Freinet, 1974)
Freinet abria, assim, as portas de sua pedagogia às inovações que a sociedade viesse a produzir no futuro. Particularmente feliz é o casamento entre a proposta desenvolvida por ele e seus pares e a micro-informática. Com a redução dos custos dos equipamentos e a ampliação das suas capacidades de comunicação, os computadores podem trazer para a sala de aula um leque de opções para produção e transmissão de textos e imagens que eram absolutamente impensáveis há poucos anos. O MULEC se apresenta como uma ferramenta que amplia as possibilidades da pedagogia Freinet levando para a sala de aula, num só objeto, muitos "cantos", muitos fichários e muitos correspondentes em potencial. Mas o mais importante é que o MULEC faz de cada estudante um cooperador num processo de produção coletiva de conhecimento.

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